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Somalilândia: 30 anos num limbo

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Chamam-lhe “o país que não existe”, “país invisível”, “país-fantasma”, por não ter reconhecimento internacional. Mas o Estado que se separou da Somália em 1991 é quase um oásis de paz e estabilidade no turbulento Corno de África. Numa entrevista, o antropólogo Markus Virgil Hoehne explica-me porquê. (Ler mais | Read more…)

A Somalilândia “merece festejar a independência, a paz, a estabilidade e a auto-suficiência”, diz o antropólogo Markus Virgil Hoehne “No início dos anos 1990, e mesmo por volta de 2000, poucos acreditavam que sobreviveria politicamente”
© Reuters

Em 2002, quando visitou a Somalilândia pela primeira vez, Markus Virgil Hoehne ficou “surpreendido com a vivacidade e a paz em Hargeissa”, a capital. É certo que uma guerra civil em 1985-1994 deixou “marcas profundas, traumas mentais e físicos”, mas a maioria das pessoas “demonstra uma vontade muito forte de superar o passado violento e de olhar para o futuro”.

A Somalilândia separou-se da Somália há 30 anos, em Maio de 1991. Para a comunidade internacional, é um país que não existe. A sua independência não é reconhecida. Só Taiwan – que também tem poucos amigos – estabeleceu recentemente relações diplomáticas bilaterais.

E, no entanto, assegura Hoehne, professor no Instituto de Antropologia Social da Universidade de Leipzig (Alemanha) e autor de Between Somaliland and Puntland: Marginalization, Militarization and Contradicting Political Visions, apesar da indiferença do mundo, a Somalilândia “tem certamente razões para celebrar”.

Antes de enumerar essas razões, comecemos por explicar as origens desta região do Corno de África onde o Islão chegou no século VII e que, entre os séculos XIV e XIX, se organizava em sultanatos.

Em 1889, disputado por três potências europeias (França, Grã-Bretanha e Itália), o território somali dividiu-se em cinco pedaços distribuídos por quatro países estrangeiros: a Costa Francesa dos Somalis; a Somalilândia Britânica; a província de Ogaden, considerada “parte integral da Etiópia”; a Somália Italiana; e o Distrito da Fronteira Norte, parte do território somali integrado na colónia do Quénia, em 1926. Tudo isto deveria ser a “Grande Somália”.

Inicialmente, alguns clãs locais insurgiram-se contra os britânicos, mas estes contaram com o apoio da família – que era e continua a ser – mais importante: os Isaaq. A rebelião durou de 1899 até 1920.

Em Junho de 2021, pela primeira vez nos últimos 16 anos, a Somalilândia votou em eleições legislativas e locais. A maioria dos lugares no Parlamento foi conquistada por dois partidos da oposição, que formaram uma aliança política
© Safaxi Media

Em 26 de Junho de 1960, o antigo protectorado da Somalilândia (Norte), onde a “administração minimalista” dos ingleses nunca tentou impor uma cultura estrangeira aos clãs, tornou-se independente da Grã-Bretanha.

A soberania foi reconhecida por 35 países, incluindo os Estados Unidos da América. Em 1 de Julho, a Somália Italiana (Sul) também conquistou a independência, e os novos países decidiram unir-se. Foi um casamento que durou apenas uma semana.

Os problemas entre duas entidades não tardaram a aparecer. O Sul estava mais desenvolvido e o Norte subrepresentado nas instâncias governamentais. A situação agravou-se após um golpe militar que levou ao poder o general Siad Barre.

Embora este tivesse posto em marcha um plano para criar uma “nação forte”, instaurando uma língua oficial, por exemplo, para facilitar a comunicação entre as várias regiões somalis, a realidade é que se foi revelando um líder ditatorial.

Barre governava segundo uma doutrina de “socialismo científico”, assente em ideias importadas da China, da Coreia do Norte e do Egipto de Nasser, mas não deixava de privilegiar o seu clã, Darod, o que agravou o ressentimento dos Isaaq.

Ao ser derrotado na guerra contra a Etiópia, em 1978, Siad Barre perdeu credibilidade. Nos anos 1980, um grupo de opositores que a repressão forçara ao exílio, a maioria do Norte e do clã Isaaq, criou o Movimento Nacional Somali (SNM) e assumiu o controlo da Somalilândia.

Seguiu-se uma guerra civil entre o SNM e o Governo central, durante a qual milhares de pessoas foram mortas e milhões obrigadas a fugir de suas casas.

Em 18 de Maio de 1991, o SNM proclamou a independência do Norte, depois de uma conferência de chefes de clãs, intelectuais, artistas, empresários e outros, em Burco. No entanto, sem o inimigo comum que esbatia os problemas internos, surgiram divisões na sociedade e cisões no SNM, daqui resultando uma nova guerra civil.

Na Somália, Siad Barre pôs em marcha um plano para criar uma “nação forte”, instaurando uma língua oficial, por exemplo, para facilitar a comunicação entre as várias regiões do país, mas foi-se revelando com o tempo um líder ditatorial e o seu autoritarismo abriu caminho à luta pela independência da Somalilândia
© Wikimedia Commons

Em Outubro de 1992, foi aprovado um cessar-fogo e, em Maio de 1993, realizada uma segunda conferência, em Borame, a qual elegeu um presidente civil, não membro do SNM (que seria dissolvido) e criou uma Câmara de Sábios (chefes de clã), com papel consultivo. Isto permitiu que o país funcionasse durante algum tempo.

Em 1994, porém, algumas regiões revoltaram-se, considerando-se desfavorecidas, e começou mais uma guerra civil, que durou até 1996. Em Fevereiro de 1997, uma terceira conferência de paz, em Hargeissa, conseguiu finalmente encontrar um “equilíbrio relativo”, com a aprovação de uma Constituição e de um governo que mistura a democracia representativa e o sistema tradicional de clãs.

Em entrevista que deu, por e-mail, Markus Virgil Hoehne, um dos maiores especialistas na Somalilândia, exalta o que testemunhou nas suas várias visitas ao país: depois de três guerras, “com a ajuda da diáspora, muitas infra-estruturas foram reconstruídas – casas de família, hotéis, restaurantes, escolas e até universidades”.

É certo que este desenvolvimento “não é igual em toda a parte”, admite Hoehne. “Enquanto Hargeissa floresceu, outras localidades no Leste ou no extremo ocidental não prosperam tanto, e há estagnação e conflitos nas periferias. Mas, apesar de tudo, em 2021, a Somalilândia como um todo é um Estado de facto.

Existe, tem um governo, uma população que se considera somalilandesa, e tem instituições políticas estáveis, como um parlamento, e uma Câmara dos Sábios, a qual recorre às tradições somalis para resolver conflitos entre clãs.”

As tradições nómadas e os sábios chegam a ser “mais influentes do que as leis estatutárias, os partidos políticos e os responsáveis governamentais”, constata Hoehne, para quem “o sistema tradicional oferece mais estabilidade, e é mais eficaz do que o sistema democrático”. O multipartidarismo serve, acima de tudo, para “promover a Somalilândia” no exterior.

Se Hargeissa é uma capital que floresceu, outras localidades no leste ou no extremo ocidental da Somalilândia não prosperam tanto, e há estagnação e conflitos nas periferias. (Na foto, Adan, uma nómada, mãe de quatro filhos, visita uma clínica móvel da organização Crescente Vermelho em Lamadhadher, uma aldeia a sul de Burao, muito afectada por uma seca extrema que causou desnutrição e outros problemas graves de saúde)
© International Federation of Red Cross and Red Crescent Societies

“A Somalilândia é um Estado real”, sublinha Hoehne. “Quem chega ao aeroporto internacional de Hargeissa, não nota diferenças em relação ao do Djibuti ou de Nairobi. O país tem a sua própria moeda, é pacífico (exceto em algumas áreas no extremo leste), e os seus habitantes são amigáveis e curiosos no contacto com os estrangeiros.”

“Quem se sente um café em Hargeissa, Burco ou qualquer outra grande cidade, não ficará sozinho por muito tempo. Poucos minutos depois, alguém se senta à mesa e começa uma conversa – em inglês, italiano, árabe – seja qual for a língua dos visitantes.”

“Até no interior rural, encontramos somalis fluentes em espanhol, russo, finlandês ou hindi que conheceram uma grande parte do mundo antes de regressarem à Somalilândia para ajudar a reconstruir a pátria.”

Hoehne não tem dúvidas de que a Somalilândia merece festejar a independência, a paz, a estabilidade e a auto-suficiência. “No início dos anos 1990, e mesmo por volta de 2000, poucos acreditavam que sobreviveria politicamente”, anota o antropólogo.

“Muitos pensaram que o renascimento da Somália seria o colapso da Somalilândia. Infeliz e tragicamente, a Somália continua um caos. Continua um Estado em guerra. A Somalilândia, pelo contrário e em grande medida, conseguiu manter-se afastada de problemas como a pirataria, o terrorismo, a guerra civil. É um exemplo luminoso do que os somalis podem alcançar, mesmo sem ajuda da comunidade internacional.”

A Somalilândia separou-se da Somália em Maio de 1991. Para a comunidade internacional, é um país que não existe. A sua independência não é reconhecida. Só Taiwan – que também tem poucos amigos – estabeleceu recentemente relações diplomáticas bilaterais
© Conde Naste Traveler | Getty Images

“A Somalilândia”, adianta Hoehne, “demonstra que sociedades ‘pobres’ e ‘devastadas pela guerra’ NÃO precisam de intervenções externas para prosperar. Neste sentido, pode ensinar ao mundo uma lição: menos intervenções e mais criatividade e responsabilidade nacionais conduzem à paz e à estabilidade de maneira mais confiável do que a ‘ajuda’ ou a ‘assistência’ externas (que tantas vezes obedecem a agendas estrangeiras e não criam legitimidade local).”

“A maioria dos países não é favorável a reconhecer a Somalilândia por várias razões”, explica Hoehne. “Na União Europeia, a Itália cultiva laços com a sua ex-colónia, conservando interesses económicos no sul da Somália. Membros da velha elite somali ainda se relacionam com a Itália.”

“O Egipto apoia a unidade somali, para manter sob controlo a Etiópia, com a qual compete pelo uso das águas do [rio] Nilo. Outros Estados árabes preferem uma Somália unida e forte no Corno de África. Os EUA e a maioria dos países da UE procuram estabilizar a Somália. Ora, reconhecer a Somalilândia não ajudaria [estes interesses].”

“Também é importante, para todos os Estados Africanos, a determinação da União Africana (UA) a que as fronteiras coloniais do continente não sejam alteradas, caso contrário, dinâmicas separatistas imprevisíveis poderiam explodir no resto do continente.”

“A retórica habitual daqueles que adoptam uma postura benevolente em relação à independência da Somalilândia é a de que Mogadíscio e Hargeissa devem negociar”, constata Hoehne. “É verdade que tem havido algum diálogo, embora sem resultados. Mogadíscio não quer que a Somalilândia se separe, e Hargeissa recusa voltar ao statu quo ante.”

Apoiantes do partido Waddani, na oposição, num comício antes das eleições presidenciais de 2017.
© Kate Stanworth | Saferworld

Viver num limbo cria problemas às pessoas na Somalilândia. “Não podem viajar livremente. Os seus passaportes não são válidos. Muitos jovens gostariam de ir para o estrangeiro, estudar ou trabalhar, mas não o podem fazer legalmente. Isto é um problema real.”

“Economicamente, os problemas são menos agudos, dado que algumas empresas privadas (somalis e não somalis) estão a investir” no país, ressalva Hoehne, destacando que “o não reconhecimento até pode ser benéfico – uma vez que a Somalilândia não obtém grandes empréstimos do Banco Mundial ou do Fundo Monetário Internacional (FMI), não tem dívidas, e as suas elites políticas não podem desviar grandes somas de dinheiro! Por isso, há menos corrupção e menos ingerência externa.”

“O não reconhecimento, por si só, não é muito problemático”, insiste Hoehne. “A Somalilândia provou que a ordem política, o processo democrático e um certo grau de desenvolvimento podem ser obtidos sem grande assistência internacional.” O que o preocupa é “a perspectiva de um futuro governo somali poder tentar subjugar a Somalilândia, por não ser um Estado reconhecido – isto provocaria, provavelmente, um novo conflito militar”.

“A Somalilândia tem a sua própria moeda, é pacífico (exceto em algumas áreas no extremo leste), e os seus habitantes são amigáveis e curiosos no contacto com os estrangeiros” (Na foto, cambistas com pilhas de notas na rua – os visitantes não têm à sua disposição máquinas de multibanco e nas compras em dinheiro, os trocos são na moeda local)
© the candytrail.com

“O contínuo falhanço da Somália como Estado deu à Somalilândia tempo para amadurecer e tornar-se mais estável. Se a Somália se tivesse estabilizado em 2000 ou 2010, poderia ter desestabilizado a Somalilândia. Mas, hoje, a Somalilândia consolidou-se e creio que, mesmo se a Somália reemergisse como um Estado pacífico e estável nos próximos 5-10 anos, não poderia simplesmente ‘engolir’ a Somalilândia”, conclui Hoehne.

“A Somália está em grandes apuros e serão precisos uns dez anos para se tornar mais estável. Não acredito que a Somalilândia fique sob um regime federal da Somália na próxima década. Talvez ambos os países possam negociar, no futuro, uma confederação (há diferenças entre federação e confederação). Se a Somália tentar dominar a Somalilândia pela força, então isso significará nova guerra.”

[Em Junho de 2021, nas primeiras eleições (legislativas e locais) em 16 anos, dois partidos da oposição na Somalilândia obtiveram uma maioria de lugares no Parlamento, segundo a Comissão Eleitoral Nacional, e formaram de imediato uma aliança política. O Partido Nacional da Somalilândia, designado por Waddani, conquistou 31 dos 82 lugares, e o Partido da Justiça e do Bem-Estar ou UCID, obteve 21. O Partido da Paz, Unidade e Desenvolvimento, até agora no poder, terá 30 deputados. Dos quatro milhões de habitantes, mais de um milhão registou-se para votar. Os três principais partidos apresentaram 246 candidatos. Nenhuma das 13 mulheres conseguiu ser eleita.]

Markus Virgil Hoehne, professor no Instituto de Antropologia Social da Universidade de Leipzig (Alemanha) e autor de Between Somaliland and Puntland: Marginalization, Militarization and Contradicting Political Visions,

Retrato

Situada no leste do Corno de África, a República da Somalilândia é uma região estratégica e das mais homogéneas do continente. Muçulmanos sunitas e de origem somali, a maioria dos habitantes considera-se uma nação.

Área: 137.600 km2 (maior do que Portugal/92.212km2)

Fronteiras: República do Djibuti, a noroeste; República Federal da Etiópia, a sul e oeste; Somália, a leste. A linha costeira, a norte, estende-se por mais de 740 quilómetros ao longo do mar Vermelho. (A Puntlândia, um estado semi-autónomo da Somália, a leste, reivindica alguns territórios da Somalilândia.)

Capital: Hargeissa (as outras grandes cidades são Burao, Borame, Berbera – porto estratégico no Golfo de Áden -, Erigabo e Las Anod.)

População: 3,5 milhões (a maioria pertence ao clã Isaaq, umas das quatro famílias dominantes; as outras são os Hawiye, Darod e Dir).

Principais línguas: Somali, árabe, inglês

Principal religião: Islão

Abrigos para refugiados em Hargeissa, a capital da Somalilândia
© Alexia Webster

Sistema político: Uma república com uma assembleia legislativa de duas câmaras (a Câmara dos Representantes e o Conselho dos Sábios, no qual estão representados os vários clãs), um presidente e um vice-presidente eleitos. O chefe de Estado nomeia o Governo, que é aprovado pelo Parlamento. O poder judicial é considerado independente. Há três partidos políticos – Waddani, Kulmiye e UCID.

Moeda: Xelim da Somalilândia.

Economia: Em 2018, o produto interno bruto (PIB) per capita era estimado em 500 dólares. A principal actividade económica é a produção de gado, sector que emprega 70% da população. A pecuária contribui em 60% para o PIB e em 85% para as receitas de exportação. A agricultura (17%) é o segundo sector mais importante. O país depende imenso das importações de alimentos, combustíveis e produtos manufacturados. É também muito dependente das remessas enviadas pela sua diáspora global, que totalizam mil milhões de dólares por ano.

Clima: As alterações climáticas têm causado seca e fome na Somália e na Somalilândia. A ONU alerta que 2,2 milhões de pessoas na região correm o risco de desnutrição.

Secessões e separatismos em África

Findo o poder colonial, vários povos têm lutado por alcançar a “forma mais radical” de autodeterminação. Apenas dois foram reconhecidos pelo mundo. Alguns falharam de forma trágica e outros prosseguem o combate. Eis alguns movimentos, do passado e do presente.

Katanga

© unocha.org

O primeiro movimento secessionista da África livre foi a tentativa de separação do Katanga, a província mais rica do antigo Congo Belga, cujas reservas de cobre, cobalto, prata, platina, urânio e zinco ainda totalizam 60% das receitas fiscais da atual República Democrática do Congo (RDC). As sementes da secessão foram plantadas em 1958, com a criação do partido semi-nacionalista CONAKAT (Confédération des associations tribales du Katanga). Em 11 de Julho de 1960, depois das primeiras eleições preparatórias da independência que colocaram na chefia do Estado Joseph Kasavubu, do partido ABAKO (Mouvement national Congolais), e na chefia do Governo Patrice Lumumba, do MNC (Mouvement national Congolais), o líder do CONAKAT, Moïse Tshombé, proclamou-se presidente do “Estado do Katanga”, precipitando uma guerra civil que ficou conhecida como Crise do Congo. Recusado o seu pedido de ajuda aos EUA, Lumumba bateu à porta da União Soviética, que lhe enviou “conselheiros técnicos”. Em plena Guerra Fria, a decisão alarmou Washington, Bruxelas e Paris. Em 14 de Setembro de 1960, um golpe do coronel Mobutu destituiu e prendeu Lumumba. No ano seguinte, a 17 de Janeiro, o primeiro-ministro seria torturado e executado no Katanga. Em Janeiro de 1963, uma intervenção da ONU derrotou as tropas de Tshombé. Em 1965, Mobutu derrubou Kasavubu e o Congo tornou-se Zaire. Tshombé morreu em Argel, sob detenção domiciliária, em 1969. No início da década de 1990, Mobutu instigou tensões entre imigrantes Luba do Kasaï e nativos do Katanga, para enfraquecer o principal rival, Étienne Tshisekedi (natural do Kasaï). O Katanga desempenhou “um papel significativo” na guerra de 1997-1998, que permitiu a Laurent Desiré Kabila, um lubakat (luba natural do Katanga) derrubar Mobutu. Quando o pai foi assassinado, em 2001, Joseph Kabila seguiu-lhe o exemplo e fez do Katanga um dos seus bastiões. Continua a usá-lo para desestabilizar o governo do sucessor, Félix Tshisekedi, filho de Étienne. Dividido em quatro províncias em 2015, o Katanga permanece uma terra de desigualdades, onde as elites beneficiam das riquezas minerais e a restante população vive na miséria.

Eritreia

© borgenproject.org

A luta da Eritreia para se tornar independente da Etiópia durou 30 anos. Foi uma guerra brutal, que começou, oficialmente, em 1961 e terminou em 1991. O reconhecimento internacional chegou em 1993, depois de a soberania ter sido aprovada, em referendo, por 99,83% da população. Os nacionalistas eritreus nunca aceitaram nem o domínio colonial da Itália, que durou do século XIX até 1941; nem a Federação Etiópia-Eritreia imposta pela ONU em 1952, após a retirada dos britânicos que haviam derrotado os italianos em 1943; nem o imperialismo repressivo de Hailé Selassié; nem a ditadura marxista de Mengistu Hailé Mariam. A rebelião contra o poder etíope nasceu entre estudantes exilados no Egipto que fundaram a Frente de Libertação da Eritreia (ELF), a qual depois se cindiu para dar lugar à Frente Popular de Libertação da Eritreia (EPLF), mais organizada e disciplinada, liderada por Isaias Afwerki. Em meados dos anos 1970, no meio de motins militares e manifestações em massa, o exército formou um comité (“O Derg”), que derrubaria o imperador em 1974. O novo regime comunista, liderado por Mengistu e apoiado pela URSS, expulsou os rebeldes das cidades e vilas, sem conseguir desalojá-los dos seus redutos montanhosos. No final dos anos 1980, com o exército etíope de rastos, um novo líder em Moscovo, Mikhail Gorbatchov, recusou renovar o acordo de defesa com Adis Abeba. Em 1988, a EPLF venceu uma grande batalha em Afabet, que mudou o rumo da guerra. Em 1989, a região do Tigré, fronteiriça com a Eritreia, ficou sob controlo da Frente de Libertação do Povo Tigré (TPLF), que logo criou a Frente Democrática Revolucionária do Povo Etíope (EPRDF). Em Maio de 1991, Mengistu fugiu do país, a EPLF assumiu o controlo de Asmara, e a EPRDF tomou o poder em Adis Abeba. O governo etíope, agora chefiado por Meles Zenawi e pela EPRDF, foi o primeiro a legitimar o novo Estado da Eritreia. Em 1994, a EPLF transformou-se em Frente Popular para a Democracia e Justiça (PFDJ) – partido único. Isaias Afwerki tornou-se um ditador. Em 1998, um ataque das forças armadas eritreias à disputada localidade fronteiriça de Badme degenerou numa guerra total com a Etiópia que causaria cerca de 100 mil mortos e um milhão de desalojados. Foi assinado um cessar-fogo em 2002, mas o conflito só terminou em 2018, quando o atual primeiro-ministro etíope, Abiy Ahmed, assinou um acordo de paz com Isaias Afwerki. Poderia ter sido a oportunidade para o tirano em Asmara introduzir reformas, mas ele preferiu vingar-se da rival TPLF, grupo que governou a Etiópia desde a queda do “Derg”, e juntou-se à guerra de Abiy pelo controlo do Tigré.

Biafra

© Rolls Press | Popperfoto | Getty Images | The New York Review of Books

A Guerra Civil de 1967-1970 para garantir a secessão da autoproclamada República do Biafra, no Sudeste da Nigéria foi “uma tragédia humana de proporções épicas”. O número estimado de mortos varia entre “mais de um milhão e três milhões”. Um bloqueio naval impediu o acesso de comida e medicamentos à região, e a fome tornou-se uma arma contra o povo igbo – o terceiro maior dos 250 grupos étnicos do país. Em 1960, quando a Nigéria se tornou independente do Reino Unido, os hausas muçulmanos conservadores do Norte, marginalizados pelo poder colonial britânico a favor dos igbos cristãos e ocidentalizados, passaram a ser a força dominante. Os igbos ressentiram-se, até porque o Leste era a região mais rica, graças às jazidas de petróleo descobertas no delta do rio Níger em 1956. Foram, pois, tensões políticas e económicas que abriram caminho à inevitável guerra civil, precedida de dois golpes de Estado em 1966, o segundo dos quais, degenerou em perseguições e massacres indiscriminados dos igbos. Calcula-se que 3000 a 10 mil foram mortos, e 500 mil a dois milhões expulsos de suas casas, pilhadas e queimadas. Em Julho de 1967, o coronel igbo Odumegwu Ojukwu proclamou a independência do Biafra, um estado de 14 milhões de habitantes e capital em Eunugu. O Governo em Lagos ripostou de imediato. A guerra atraiu actores externos. O Biafra contava com o apoio e armas de Portugal, França, Espanha, África do Sul, Israel. Foi reconhecido pelo Gabão e Costa do Marfim, Zâmbia e Tanzânia, apesar de a Organização de Unidade Africa ter condenado a secessão. Washington considerava a Nigéria “um baluarte anti-comunista” e a Londres interessava que se mantivesse na Commonwealth. Quando as armas inglesas começaram a faltar, a Nigéria virou-se para a URSS, e foram os aviões de combate e outro material bélico expedidos por Moscovo que contribuíram para a derrota do Biafra. A guerra acabou, mas, para alguns, o sonho permanece mais de 50 anos depois. Um novo movimento separatista, Indigenous People of Biafra/Povo Indígena do Biafra (IPOB), liderado por Nnamdi Kanu, reflecte e canaliza agora o descontentamento dos igbos. Desde Agosto de 2020 que se assiste a uma escalada de confrontos opondo o IPOB à polícia e ao exército nigerianos. Em Dezembro, Kanu anunciou a criação de uma organização paramilitar, Eastern Security Network/Rede de Segurança Oriental (ESN).

Sudão do Sul

© Maura Ajak | Associated Press

Opondo o Sul e o Norte do Sudão, foi a mais longa guerra civil em África: durou, com algumas interrupções, 50 anos. Causou 2 milhões de mortos e mais de 4 milhões de desalojados. O Sudão havia sido ocupado pelo Egipto no século XIX, primeiro em 1821-1822, com a conquista do Norte, e depois, numa aliança com a Grã-Bretanha que passou a administrar o Sul, em 1877. A partir de 1899, foi estabelecido um Condomínio Anglo-Egípcio, que durou até à independência, em 1956. No ano anterior, o Sul, animista e cristão, revoltou-se contra os privilégios do Norte, árabe e muçulmano, iniciando uma guerra de guerrilha. Em 1972, foi assinado um acordo que permitiu ao Sul alguma autonomia. Quando esta foi cancelada em 1983, o Exército de Libertação Popular do Sudão (SPLA), de John Garang, retomou as hostilidades. O conflito terminaria em 2005, após a assinatura de um Acordo de Paz, que permitiu um referendo sobre a independência, aprovada em Janeiro de 2011 por 98,83% dos votantes. Em 5 de Julho, a República do Sudão deixou de ser o maior país de África e a República do Sudão do Sul, com capital em Juba, tornou-se no mais novo país do mundo (e dos mais jovens – metade dos 11 milhões de habitantes tem menos de 18 anos). Tornou-se também um dos Estados mais pobres, apesar de aqui se situarem 75% das reservas petrolíferas antes controladas por Cartum. Em 2013, uma guerra entre o governo do presidente, Salva Kirr, e a oposição chefiada por Riek Machar (agora vice-presidente, após um acordo de partilha de poder) causou 400 mil mortos e dezenas de milhares de deslocados. Em 2021, uma década após a independência, o Sudão do Sul enfrenta uma grave crise de fome e insegurança alimentar, que afecta 8,3 milhões de pessoas, segundo a ONU. Três factores contribuem para o novo drama: intensos combates entre milícias de etnias rivais; chuvas torrenciais, derivadas das alterações climáticas; e o impacto da pandemia de covid-19.  

Cabinda

© altoconselhodecabinda.org

Na província do Norte onde Angola vai buscar metade das suas receitas petrolíferas, o espírito separatista perdura desde a independência do país, em 1975. A população não beneficia das riquezas locais. Em 2021, a taxa de desemprego subiu de 21 para 42%, em parte devido à covid-19. O primeiro grupo secessionista neste território situado entre o Congo-Kinshasa e o Congo-Brazaville foi a Frente para a Libertação do Enclave de Cabinda-Forças Armadas de Cabinda (FLEC/FAC), ainda activa. Nos anos 1970 e 1980, a FLEC/FAC travou, sobretudo, uma “guerra de guerrilha de baixa intensidade”. Atacava tropas governamentais e alvos económicos; raptava trabalhadores estrangeiros das indústrias do petróleo e da construção civil. Nunca conseguiu vitórias territoriais, militares ou diplomáticas, porque o Estado, que a via como “ameaça existencial”, combateu-a implacavelmente. Outras facções secessionistas apareceram depois: a Frente de Libertação do Estado de Cabinda (FLEC), que advoga “a via militar” para obter a independência; a FLEC-PM (Posição Militar); o Movimento Independentista de Cabinda (MIC); e a União dos Cabindenses para a Independência (UCI). Estes dois advogam uma luta não violenta, apelando a manifestações e à realização de um referendo. Apesar dos seus protestos pacíficos, dezenas de activistas têm sido presos e torturados, segundo a Amnistia Internacional. Cabinda não é a única província separatista de Angola. Uma vasta região rica em diamantes, designada por “Reino Lunda” e abrangendo a Lunda Norte, a Lunda Sul, o Moxico e o Kuando Kubango, clama por autonomia. O seu representante é o Movimento Protectorado Lunda Tchokwe (MPPLT), fundado em 2006 e cuja reivindicação se baseia num tratado celebrado em 1885, entre os chefes locais e Portugal, que teria garantido a soberania do território. Violentamente reprimido pelas autoridades, o MPPLT queixa-se de que aquele acordo foi ignorado durante as negociações para a independência de Angola.

Casamansa

© rfi.fr/pt

A luta pela independência de Casamansa, província do Senegal encravada entre a Gâmbia e a Guiné-Bissau, na África Ocidental, começou em 1982 como um protesto pacífico antes de se tornar numa guerra de guerrilha, nos anos 1990. Milhares de pessoas foram mortas e desalojadas desde então. Em 2012, iniciou-se um diálogo entre governo e rebeldes, mediado pela Comunidade de Sant’Egídio, e em 2014 firmou-se um cessar-fogo, mas a paz revelou-se ilusória e o conflito reacendeu-se. Em 26 de Janeiro de 2021, uma operação aérea e terrestre do exército senegalês capturou três bases do Movimento das Forças Democráticas de Casamansa (MFDC), acusado de ataques contra civis e tráfico de madeira e canábis. A ofensiva foi apoiada pela Guiné-Bissau. O MFDC, que está dividido em facções (a “linha dura”, na fronteira com a Gâmbia; a “ala moderada”, na fronteira com a Guiné-Bissau), ameaçou retomar as suas incursões no vizinho a Sul, país onde, em 1999, ajudou a derrubar o presidente “Nino” Vieira. As populações de Casamansa e da Guiné-Bissau, que pertencem ao mesmo grupo étnico-linguístico, foram separadas por um acordo estabelecido em 1886, segundo o qual Portugal renunciou à baía do rio Casamansa, incluindo o porto de Ziguinchor, e a França, em contrapartida, abandonou a área de Cacine. Com 1,9 milhões de habitantes, Casamansa é o “celeiro” do Senegal, do qual faz parte desde 1960, assegurando 50% da produção total de arroz do país. Os seus recursos minerais incluem o ouro cinzento, explorado por ganeses, jazidas de ferro e inexploradas reservas offshore de petróleo.

Ambazónia

© foreignpolicy.com

Após a I Guerra Mundial, a colónia alemã dos Camarões ficou sob mandatos de Londres e de Paris. Em 1961, um referendo determinou que a região (norte) britânica se juntaria à Nigéria e a região (sul) francesa seria integrada na República dos Camarões. Neste país, onde o francês e o inglês são línguas oficiais, a minoria que habita as duas províncias anglófonas queixa-se de ser marginalizada pelo governo maioritariamente francófono. No final de 2016, protestos pacíficos foram reprimidos por forças de segurança. Seguiu-se a criação de mais de 30 grupos armados separatistas e a proclamação, em 2017, da República da Ambazónia – não reconhecida pela ONU. O seu executivo é liderado sobretudo por camaroneses anglófonos na diáspora. A imparável guerra assimétrica entre exército e separatistas, ambos acusados de violações graves dos direitos humanos, incluindo ataques a escolas, já causou quase 4000 mortos. Pelo menos 700 mil civis são deslocados internos e 68 mil refugiados na Nigéria.

Togolândia Ocidental

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Durante a I Guerra Mundial, em 1914, a Grã-Bretanha e a França invadiram a colónia alemã da Togolândia, dividindo o território numa Togolândia Francesa (futuro Togo, onde a língua oficial é o francês) e numa Togolândia Britânica (actual Gana, onde a língua oficial é o inglês). Em 1956, num plebiscito organizado pela ONU, cerca de 2/3 dos habitantes da Togolândia Britânica optaram por integrar o Gana, das primeiras colónias independentes do império. Logo surgiram vários grupos secessionistas, sobretudo da etnia Ewe. Em 2017, o movimento Homeland Study Group Foundation (HSGF), liderado por Charles Kormi Kudzodzi, começou a exigir a independência, mas, em Maio de 2019, o Governo em Accra prendeu os principais dirigentes. Em 2020, um novo grupo, a Frente de Restauração da Togolândia Ocidental (WTRF), proclamou um Estado soberano, não reconhecido pela ONU, numa faixa de território de 550km de comprimento e 60km de largura, entre o Gana e o Togo, desde a fronteira com o Burkina Faso, no Norte, até ao Golfo da Guiné. A Togolândia Ocidental, rica em ouro e petróleo, é habitada por cerca de 4 milhões de pessoas, que se sentem mais próximas do Togo.

Fontes: africanews.com; blog.cei.iscte-iul.pt; britannica.com; Deutche Welle; france24.com; globalvoices.org; International Crisis Group; instituto-camoes.pt; International Institute Journal, da Universidade de Michigan; lepoint.fr; Secession and Separatist Conflicts in Postcolonial Africa; The Independence Struggles and The Struggles for Independence; The Guardian.; The New Humanitarian; voaportugues.com.

© indoafrican.org

Estes artigos, agora actualizados, foram publicados originalmente na edição de Junho de 2021 da revista ALÉM-MAR | These articles, now updated, were originally published in the June 2021 edition of the Portuguese news magazine ALÉM-MAR


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